A Imaginauta lançou o desafio e eu aceitei. Na comemoração dos 200 anos do lançamento do clássico “Frankeinstein, ou o Prometeu Moderno” de Mary Shelley, a editora em parceria com a Biblioteca de Marvila, propôr a escritores amadores fazerem uma maratona de escrita de contos de terror. Envolvidos pelo lindíssimo e enigmatico Palácio da Mitra em Marvila, foi pela noite dentro que surgiram as mais assustadoras cenas e macabras personagens.

 

O resultado da minha maratona fica aqui. Espero que gostem. Buuuhhhh! 🙂

 

 

*

 

 

O barulho dos estilhaços da loiça partida no chão irrompe pela majestosa sala de Maria.

Resgatada desta forma abrupta dos seus sonhos, a jovem atordoada e ensonada apanha o que resta da sua chávena de chá, ajeita os ruivos caracóis que lhe haviam pousado sobre a pálida tez e recosta-se novamente no sofá. Recorda o sonho que estava a ter e fica deliciada a imaginá-lo.

 

Há alguns meses que Maria se havia fechado ao Mundo na mansão que herdou dos padrinhos, a família adoptiva que a criou, quando aos 5 anos de idade a gadanha colheu a vida aos seus pais. Ainda que tendo crescido com um eterno lamento pelo que o destino lhe traçou, a jovem só voltou a lamuriar os seus dias, depois de alguns desgostos de amor lhe terem ensombrado a esperança.

 

Depois de Rui, o namorado mulherengo, seguiu-se Frederico, o incurável alcoólico e por fim Filipe, o emocional príncipe que tinha pela terceira e última vez levado Maria a acreditar no amor. No eterno e arrebatador amor. No amigo amante amor. No, para sempre, amor.

 

Os sonhos que a visitavam ultimamente e que tinham já transposto as linhas da imaginação, habitando os seus dias e os seus pensamentos, deixavam-na sempre entre uma racional loucura e um irracional desejo de os concretizar.

Cada um dos seus três namorados era, ao mesmo tempo, o que mais desejava e o que mais abominava. Quando a magoavam, via neles o que de pior existia num homem, todos os defeitos e características detestáveis. Mas quando o namoro ia de vento em popa, achava neles o príncipe encantado, cuja imagem crescia na sua cabeça desde a adolescência.

 

Um dia, lembrando os amados perdidos, Maria percebeu que tinha já encontrado o homem da sua vida. Aquele com que sonhava casar, com quem queria ser mãe e que ao lado desejava envelhecer. Afinal, Maria tinha já encontrado o homem da sua vida. Mas… para conseguir ter esse homem, Maria teria de tirar a vida aos três homens que haviam sido seus.

Os sonhos que visitavam as noites de Maria e passeavam nos seus dias eram macabramente idílicos e neles ela retiraria as características boas dos seus três amados, compondo assim o homem da sua vida.

 

Com a paixão a toldar a razão, Maria engendra um plano, à sua mente, infalível. Irá seduzir os homens com quem namorou, fazê-los tomar uma poção mágica que encontrou num dos milhentos livros da biblioteca da mansão e arrancar literalmente deles aquilo que nos seus corpos a seduziu. Assim, tiraria deles apenas aquilo que física e emocionalmente a havia feito perder-se de amor por eles.

 

O primeiro seria Rui, o seu primeiro amor. Convidou-o para jantar e acompanhou-lhe a refeição com um fresco vinho que de uvas nada tinha e que lhe roubou os sentidos ao segundo gole. Depois de a poção fazer efeito e num golpe único e decidido, Maria cortou-lhe o pescoço, guardando a cabeça, pois nela estava o cérebro sedutor de Rui e os seus encantadores olhos cor de avelã.

Da noite com Frederico e, usando exactamente o mesmo modus operandi, Maria retirou os membros inferiores, trazendo para a criatura que agora criava o prazer das noites que com ele havia passado e com a magia que lhe lançou, roubou-lhe a alegria contagiante que tantas vezes a fez gargalhar e sentir a mulher mais feliz do Mundo.

Por fim, no terceiro encontro, com Filipe, o seu namorado mais sensível e amoroso, a tresloucada Maria inferiu-lhe um golpe fatal no peito, para do jovem retirar o tronco e os braços nos quais tinha repousado o sono e a tinham envolvido nas noites frias que partilharam.

Em nenhum momento Maria se sentiu arrependida do que fazia, pois a esta altura já o desejo de ter o homem e o amor da sua vida estava tão próximo de ser real, que nada a fazia demover desta ideia. Era por amor que o fazia e por amor tudo valia. Todas as trevas iriam florescer e todos os dias iriam raiar mais luz.

 

Usando dos seus estudos em ciências e anatomia, Maria recompôs todas as partes numa só. Todos os pedaços que, em cada um tinha admirado e todas as características que a tinham seduzido e levado a apaixonar-se, estavam agora a habitar apenas um corpo e uma mente. O homem com que Maria sempre sonhou estava ali, diante dos seus meigos e vidrados olhos. Aquele que iria amar e fazer sentir-se amada para sempre. Assim nasceu Fruripe.

Quando ele acordou do sono que o tinha tornado este novo ser, olhou para ela exactamente da forma que Maria sempre ansiou ser observada. Aquele olhar apaixonado, sereno e desejável arrebatou o coração da jovem rapariga que naquele instante se apaixonou perdidamente pela sua criação.

 

Foram imensamente felizes e eternamente inesquecíveis os dias que se seguiram e, em segundo algum, Maria duvidou de que tinha tomado a decisão certa, pois tinha agora a ladear-lhe o sono e a amanhecer-lhe os dias, o homem da sua vida, aquele com que sempre sonhara.

 

Mas uma coisa faltava. Ambos o sabiam e tentavam fingir não ver.

 

No momento em que Maria golpeou o peito de Filipe, atingiu também o seu coração e assim, este ser que agora amava, havia sido criado sem o órgão mais vital, não só à vida, mas também ao amor.

 

Na noite de 06 de Outubro de 2018, quando a lua já iluminava do alto o céu breu da vila e já os corpos de Maria e Fruripe repousavam no seu leito de paixão, o desfecho mais macabro e apaixonante acontece.

Os olhos dele arregalam-se como que acordado mecanicamente do seu sono e o seu corpo ergue-se ao lado do dela. Olha-a ternamente, apaixonado pela sua amada criadora. Num rasgo de loucura e insana alienação, a sua mão irrompe pelo peito dela e arranca-lhe o coração.

O coração que o amou e criou. O coração que ao lhe dar sentido a ele, colhe a vida dela.

 

O barulho dos estilhaços da loiça partida no chão irrompe pela majestosa sala de Maria.

Resgatada desta forma abrupta dos seus sonhos, a jovem atordoada e ensonada apanha o que resta da sua chávena de chá, ajeita os ruivos caracóis que lhe haviam pousado sobre a pálida tez e recosta-se novamente no sofá. Recorda assustada o sonho que estava a ter e tenta retirar da sua mente o pesadelo do qual despertou.

 

 

 

 

[Foto: Alex Stuart]

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